A Águia e Galinha
A Águia e a Galinha – Leonardo Boff e James Aggrey.
Todo ponto de vista é avista de um ponto
Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.
Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para
entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é
a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.
A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para
compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale
dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que
trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte
e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma
interpretação.
Sendo assim, fica evidente que cada leitor é
co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque
compreende e interpreta a partir do mundo que habita.
Com estes pressupostos vamos contar a história de
uma águia, criada como galinha. Essa história será lida e compreendida
como uma metáfora da condição humana. Cada um lerá e relerá conforme
forem seus olhos. Compreenderá e interpretará conforme for o chão que
seus pés pisam.
Os antigos bem diziam: habent sua fata libelli,
os livros têm seu próprio destino. Tinham razão, porque o destino dos
livros está ligado ao destino dos leitores. E aí entram em cena a águia e
a galinha, carregadas de significação, como veremos ao longo da nossa
história.
Esperamos que para você a águia e a galinha se
transformem também em símbolos e sacramentos da busca humana por
integração e por equilíbrio dinâmico.
Desejamos que a águia sepultada desperte e voe,
ganhando altura e ampliando os horizontes de sua releitura e compreensão
de você mesmo e do mundo.
Convidamos você a fazer-se, junto com as forças diretivas do universo, co-criador/co-criadora do mundo criado e por criar.
A Águia e a Galinha
Era uma vez um político, também educador popular,
chamado James Aggrey. Ele era natural de Gana, pequeno país da África
Ocidental. Até agora, talvez, um ilustre desconhecido. Mas, certa feita,
contou uma história tão bonita que, com certeza, já circulou pelo
mundo, tornando seu autor e sua narração inesquecíveis.
Como muitas pessoas provavelmente não tiveram a
oportunidade de ler sua história, nem de conhecer seu país, vamos
inicialmente falar um pouco de Gana e relembrar aquela história.
Gana está situado no Golfo da Guiné, entre a Costa
do Marfim e o Togo. Sua longa história vem do século IV. Alcançou o
apogeu entre 700 e 1200 de nossa era. Naquela época havia tanto ouro que
até os cães de raça usavam coleiras e adornos com esse precioso metal.
No século XVI Gana foi feita colônia pelos
portugueses. E por causa do ouro abundante chamaram-na de Costa do Ouro.
Outros, como os traficantes de escravos, denominavam-na também de Costa
da Mina.
No século XVIII, época do chamado ciclo da Costa da
Mina, vieram dessa região, especialmente para a Bahia, cerca de 350 mil
escravos. Com eles vieram e foram incorporados muitos elementos de sua
cultura. O uso medicinal das folhas (ewé) que curam somente quando acompanhadas de palavras mágicas e de encantamento. E sua religião, o ioruba
ou o candomblé, que possui uma das teologias mais fascinantes do mundo.
Faz de cada pessoa humana uma espécie de Jesus Cristo, que quer dizer,
um virtual incorporador dos orixás, divindades ligadas à natureza e as
suas energias vitais.
Os escravos eram negociados em troca de fumo de
terceira. Refugado por Lisboa, esse fumo era muito apreciado na áfrica
por causa de seu perfume. Dizia-se até: “a Bahia tem fumo e quer
escravos; Costa da Mina tem escravos e quer fumo; portanto façamos um
negócio que é bom para os dois lados”. A maioria dos escravos das
plantações de cana-de-açúcar nos Estados Unidos veio também da região de
Gana.
A pretexto de combater a exportação de escravos
para as Américas, a Inglaterra se apoderou desta colônia portuguesa. De
início, em 1874, ocupou a costa e, em seguida, em 1895, invadiu todo o
território. Gana perdeu assim a liberdade, tornando-se apenas mais uma
colônia inglesa.
A libertação começa na consciência
A população ganense sempre alimentou forte
consciência de sua história e muito orgulho da nobreza de suas tradições
religiosas e culturais. Em conseqüência, foi constante sua oposição a
todo tipo de colonização. James Aggrey, considerado um dos precursores
do nacionalismo africano e do moderno pan-africanismo, fortaleceu
significativamente esse sentimento.
Ele teve grande relevância política como educador
de seu povo. Para libertar o país – pensava ele à semelhança de Paulo
Freire – precisamos, antes de tudo, libertar a consciência do povo. Ela
vem sendo escravizada por idéias e valores antipopulares, introjetados
pelos colonizadores.
Com efeito, os colonizadores, para ocultar a
violência de sua conquista, impiedosamente desmoralizavam os
colonizados. Afirmavam, por exemplo, que os habitantes da Costa do Ouro e
toda a áfrica eram seres inferiores, incultos e bárbaros. Por isso
mesmo deviam ser colonizados. De outra forma, jamais seriam civilizados e
inseridos na dimensão do espírito universal.
Os ingleses reproduziam tais difamações em livros.
Difundiam-nas nas escolas. Pregavam-nas do alto dos púlpitos das
igrejas. E propalavam-nas em todos os atos oficiais.
O martelamento era tanto que muitos colonizados
acabaram hospedando dentro de si os colonizadores com seus preconceitos.
Acreditavam que de fato nada valiam. Que eram realmente bárbaros, suas
línguas, rudes, suas tradições, ridículas, suas divindades, falsas, sua
história sem heróis autênticos, todos efetivamente ignorantes e
bárbaros.
Pelo fato de serem diferentes dos brancos, dos
cristãos e dos europeus, foram tratados com desigualdade, discriminados.
A diferença de raça, de religião e de cultura não foi vista pelos
colonizadores como riqueza humana. Grande equívoco: a diferença foi
considerada como inferioridade!
Processo semelhante ocorreu no século XVI com os
indígenas da América e com os colonizados da Ásia. E ocorre ainda hoje
com os países que não foram inseridos no novo sistema mundial de
produção, de consumo e de mercado global, como a maioria das nações da
América Latina, da África e da Ásia. Elas são consideradas “sem
interesse para o capital”, tidas, em termos globais, como “zeros
econômicos” e suas populações vistas como “massas humanas descartáveis”,
“sobrantes” do processo de modernização. São entregues à própria fome, à
miséria e à margem da história feita pelos que presumem ser os senhores
do mundo. Estes mostram, por isso, uma insensibilidade e uma
desumanidade que dificilmente encontra paralelos na história humana.
Infelizmente, a mesma discriminação acontecem com
os pobres e miseráveis, com as mulheres, os deficientes físicos e
mentais, os homossexuais, os portadores do vírus HIV, os hansenianos e
todos aqueles que não se enquadram nos modelos preestabelecidos. Todos
são vítimas do preconceito e da exclusão por parte daqueles que se
pretendem os únicos portadores da humanidade, de cultura, de saúde, de
saber e de verdade religiosa.
- Dominadores, vossas arrogância vos torna cruéis e
sem piedade. Ela vos faz etnocêntricos, dogmáticos e fundamentalistas.
Não percebeis que vos desumanizais a vós mesmo? Reparai: onde chegais,
fazeis vítimas de toda ordem por conta do caráter discriminador,
proselitista e excludente de vossas atitudes e de vosso projeto
cultural, religioso, político e econômico que impondes a todo mundo!
A libertação se efetiva na prática histórica
Toda colonização – seja a antiga, pela invasão dos
territórios, seja a moderna, pela integração no mercado mundial –
significa sempre um ato de grandíssima violência. Implica o bloqueio do
desenvolvimento autônomo de um povo. Representa a submissão de parcelas
importantes da cultura, com sua memória, seus valores, suas
instituições, sua religião, à outra cultura invasora. Os colonizados de
ontem e de hoje são obrigados a assumir formas políticas, hábitos
culturais, estilos de comunicação, gêneros de música e modos de produção
e de consumo dos colonizadores. Atualmente, se verifica uma poderosa
“hamburguerização” da cultura culinária e uma “rockiquização” dos
estilos musicais. Os que detêm o monopólio do ter, do poder e do saber,
controlam os mercados e decidem sobre o que se deve produzir, consumir e
exportar. Numa palavra, os colonizados são impedidos de fazer suas
escolhas, de tomar as decisões que constroem sua própria história.
Tal processo é profundamente humilhante para um
povo. Produz sofrimentos dilaceradores. A médio e a longo prazo não há
razões, quaisquer que sejam, que consigam justificar e tornar aceitável
tal sofrimento. Aos poucos ele se torna simplesmente insuportável. Dá
origem a um antipoder. Os oprimidos começam a “extrojetar” o opressor
que forçadamente hospedam dentro de si. É o tempo maduro para o processo
de libertação. Primeiro, na mente. Depois, na organização. Por fim, na
prática.
Libertação significa a ação que liberta a liberdade
cativa. É só pela libertação que os oprimidos regatam a auto-estima.
Refazem a identidade negada. Reconquistam a pátria dominada. E podem
construir uma história autônoma, associada à historia de outros povos
livres.
- Oprimidos, convencei-vos desta verdade: a
libertação começa na vossa consciência e no resgate de vossa própria
dignidade, feita mediante uma prática conseqüente. Confiai. Jamais
estareis sós. Haverá sempre espíritos generosos de todas as raças, de
todas as classes e de todas as religiões que farão corpo convosco na
vossa nobre causa da liberdade. Haverá sempre aqueles que pensarão: cada
sofrimento humano, em qualquer parte do mundo, cada lágrima chorada em
qualquer rosto, cada ferida aberta em qualquer corpo é como se fosse uma
ferida no meu próprio corpo, uma lágrima dos meus próprios olhos e um
sofrimento do meu próprio coração. E abraçarão a causa dos oprimidos de
todo o mundo. Serão vossos aliados leias.
James Aggrey incentivava em seus compatriotas
ganenses tais sentimentos de solidariedade essencial. Infelizmente não
pôde ver a libertação de seu povo. Morreu antes, em 1927. Mas semeou
sonhos.
A libertação veio com Kwame N´Krumah, uma geração
após. Esse aprendeu a lição libertária de Aggrey. Apesar da vigilância
inglesa, conseguiu organizar em 1949 um partido de libertação, chamado
de Partido de Convenção do Povo.
N´Krumah e seu partido pressionaram de tal maneira a
administração colonial inglesa, que o Governo de Londres se viu
obrigado, em 1952, a fazê-lo primeiro-ministro. Em seu discurso de posse
surpreendeu a todos ao proclamar: “Sou socialista, sou marxista e sou
cristão”.
Obteve a sua maior vitória no dia 6 de março de
1957 quando presidiu a proclamação da independência da Costa do Ouro.
Agora o país voltou ao antigo nome: Gana. Foi a primeira colônia
africana a conquistar a sua independência.
Gana tem hoje 238.537 quilômetros quadrados, com
densa selva tropical ao sul, atravessada pelo grandioso rio Volta de
1.600 quilômetros de comprimento. A represa Akoddombo, feita com o rio,
forma um imenso lago de 8.482 quilômetros quadrados, numa extensão de
quatrocentos quilômetros. A capital é Accra, com cerca de 700 mil
habitantes numa população total de 16, a milhões de pessoas. Estima-se
que 20 ano 2000 Gana terá 20 milhões de habitantes.
Se aplicarem os ideais de James Aggrey,
consolidarão sua identidade e autonomia. E avançarão pouco a pouco no
sentido de uma cidadania participativa e solidária.
Nós somos águias.
Vamos, finalmente, contar a história narrada por James Aggrey.
O contexto é o seguinte: em meados de 1925, James
havia participado de uma reunião de lideranças populares na qual se
discutiam os caminhos da libertação do domínio colonial inglês. As
opiniões se dividiam.
Alguns queriam o caminho armado. Outros, o caminho
da organização política do povo, caminho que efetivamente triunfou sob a
liderança de Kwame N´Krumah. Outros se conformavam com a colonização à
qual toda a áfrica estava submetida. E havia também aqueles que se
deixavam seduzir pela retórica dos ingleses. Eram favoráveis à presença
inglesa como forma de modernização e de inserção no grande mundo tido
como civilizado e moderno.
James Aggrey, como fino educador, acompanhava
atentamente cada intervenção. Num dado momento, porém, viu que líderes
importantes apoiavam a causa inglesa. Faziam letra morta de toda a
história passada e renunciavam aos sonhos de libertação. Ergueu então a
mão e pediu a palavra. Com grande calma, própria de um sábio, e com
certa solenidade, contou a seguinte história:
“Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha
apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um
filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia
milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/rainha
de todos os pássaros.
Depois de cinco anos, esse homem recebeu em sua
casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o
naturalista:
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia.
- De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu a
criei cimo galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha
como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre
uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia
voar às alturas.
- Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
– Já que de fato você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do
naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo,
ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
– Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
– Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurou-lhe:
O camponês comentou:
– Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
– Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurou-lhe:
– Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
– Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
– Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
– Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra as suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
– Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
– Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
– Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra as suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas,
grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se soberana, sobre si
mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais
alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…”
E Aggrey terminou conclamando:
- Irmãos e irmãs, meus compatriotas! Nós fomos
criados à imagem e semelhança de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram
pensar como galinhas. E muitos de nós ainda acham que somos
efetivamente galinhas. Mas nós somos águias. Jamais nos contentemos com
os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar.
FONTE: http://alfabetizacaosolidaria.wordpress.com/a-aguia-e-galinha/