Espelho meu: as crianças e a questão étnico-racial
Por Yvone Costa de Souza
Falar e escrever sobre racismo e
preconceito implica na apropriação da história da África e do Brasil
pelas instituições, professores(as) e educadores(as), entendendo-os como
sujeitos histórico-sociais, capazes de intervir nos processos de ensino
e de pesquisa que constituem a dinâmica social no cotidiano da escola,
demarcando-se que o território africano é composto da diversidade
étnica, cultural e política. As matrizes culturais características desse
povo, originadas e existentes no continente africano, delimitam as
variadas etnias e suas culturas, ressaltando, também, a importância de
cultuar os ancestrais de um povo excluído das matrizes curriculares e
escondido em propostas pedagógicas emblemáticas de uma cultura
eurocêntrica.
Ao tratar da questão das diversidades racial e
cultural nas creches e na Educação Infantil torna-se relevante
considerar a formação docente, que deveria ser o primeiro critério para a
seleção das professoras que trabalham na Educação Infantil. Os cursos
de formação em nível médio, modalidade normal, e em pedagogia de nível
superior não se constituem de uma matriz curricular, mas, como coloca
Gomes e Silva (2002), deveriam propor “o desafio de construir e
implementar propostas voltadas para uma pedagogia da diversidade e assim
construir uma proposta mais coletiva” que contemple a infância pequena.
A
má qualidade da formação e a ausência de condições adequadas ao
exercício do trabalho dos professores são históricas em nosso país,
trazendo em evidência as amarras sociais e culturais encontradas no
cotidiano da prática docente. Um professor ou uma professora, no seu
curso de formação, estuda e é apresentado(a) a uma criança e, quando
eles chegam para trabalhar nas unidades escolares públicas e
comunitárias, encontram outra. Deparam-se com histórias, fatos, locais,
situações, solicitações que a sua formação não dá conta. Sua formação
profissional permanece periférica. No caso da Educação Infantil, as
políticas de formação no Brasil, desde a década de 90, vêm sendo
representadas por movimentos para a melhoria na qualidade, resultando
numa definição de identidade dos serviços destinados às crianças de 0 a 6
anos.
Para compreender o conjunto de saberes dos professores da
educação infantil, é preciso considerar as marcas produzidas
historicamente em sua trajetória profissional, marcadas pela diversidade
de funções do atendimento às crianças pequenas, que refletem e
influenciam o cotidiano da educação infantil (AQUINO, 2008, p. 169).
A
formação inicial nos cursos de magistério, modalidade Normal médio e
superior, até os anos 90, não contemplava a criança de 0 a 3 anos, o que
confirma a invisibilidade dessa faixa etária, mesmo no mundo
contemporâneo. Como vimos, somente a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, com a aprovação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é que se estabeleceu a
Educação Infantil como etapa inicial da Educação Básica.
Em
relação aos cursos específicos sobre Educação Infantil, podemos concluir
que na Formação de Magistério, assim como no Curso de Pedagogia, nas
escolas normais e nas universidades, as crianças pequenas não foram
apresentadas aos(às) educadores(as).
A compreensão de que
trabalhar com Educação Infantil é uma tarefa que não exige formação está
ligada a uma visão que não reconhece nesse “cuidado” a sua dimensão
educativa, desafiadora, voltada para o desenvolvimento da criança. A
presença de professores nas turmas de crianças maiores denuncia o quanto
ainda a Educação Infantil organiza seu trabalho como sendo uma fase
preparatória para a escola regular. É como se só as crianças maiores
precisassem de um trabalho pedagógico, que, na Educação Infantil, ainda é
visto como se fosse unicamente a preparação ou “prontidão” para a
escola.
Há necessidade de se estabelecer um currículo em que
conversar com a criança que ainda não fala, dar banho, trocar fraldas,
colocar no colo, organizar um ambiente que garanta o movimento para
aquelas que ainda não andam e deixá-las o menor tempo possível no berço
sejam atividades pedagógicas que envolvam interação, preparação,
trabalho corporal, afeto, amizade e respeito pelas diferenças e as
diversidades.
Percebemos ainda que, embora com formação, muitos
têm uma experiência inicial de trabalho em escolas com turmas regulares.
O fato de hoje trabalharem em creches não possibilitou muita discussão
sobre a especificidade do trabalho com a Educação Infantil como um todo,
do berçário às turmas de 6 anos. Há uma necessidade da formação
continuada, voltada para a Educação Infantil e que seja entendida como
necessária para a atuação em todas as turmas, mas em particular, com as
crianças de 0 a 3 anos.
O negro e o preconceito racial são
frequentes no espaço da escola e na história do Brasil. A diversidade
racial revela a riqueza de um povo de luta, de resistência e as
conquistas dos povos negros. Na formação docente e no cotidiano da
escola, embora a Lei nº 10.639 garanta os estudos da África e da Cultura
Afro-brasileira, estes apenas são apresentados às crianças em datas
comemorativas oficiais, fugindo do caminho legal. O emblema eurocêntrico
embranquecido é tão forte, que mesmo com a Lei, a escola em seus
projetos pedagógicos e práticas cotidianas não a utiliza como ferramenta
de desconstrução desse espaço segregatório.
Pensar na formação
docente para infância com um currículo de valorização cultural que
contemple as nossas origens africanas pautado na diáspora é um caminho
de luta contra o racismo. Buscar estudos e ações que considerem o ensino
e a pesquisa da história do povo africano, a marca de um povo
arrancado, de maneira trágica, de seu continente, lugar de uma rica
cultura construída por povos de 53 países, é imprescindível para a
construção de um currículo pautado na valorização da diversidade racial.
A
África é um dos maiores continentes do planeta, perdendo apenas para a
Ásia e a América e, ganhando disparado, do continente europeu. Mas, a
marca da dominação herdada e produzida durante esse trágico e cruel
episódio, a escravidão, pode ser desconstruída através de propostas,
vontade e comprometimento políticos do poder do Estado.
Um dos
grandes desafios que se coloca, ligado diretamente à formação dos
educadores infantis, é a superação de dificuldades de conviver com as
questões raciais entre as crianças e entre eles mesmos, a fim de que se
construa uma prática pedagógica voltada para o respeito mútuo,
conscientizando-se de que é fundamental lidar com as diferenças,
partindo do princípio de que elas são riquezas e precisam ser
respeitadas, ou seja, revelar um pouco as emoções, as razões individuais
e os preconceitos herdados da nossa história e da nossa cultura. Sem
desconsiderar a nossa história de vida, que nos leva a enxergar melhor
os impedimentos à mudança, precisamos abandonar os sentimentos e emoções
que impossibilitam o enfrentamento dessas questões.
Dialogar com
os professores de Educação Infantil sobre as questões raciais, de
preconceito e discriminação, permanentemente fez, e ainda faz parte das
minhas experiências pessoal e profissional, por acreditar que a troca, a
partilha de conversas é um caminho possível para reconstruir ideias,
valores e representações que se tem a respeito do negro, na certeza de
que essas conversas favorecem as minhas próprias reflexões.
Relembrando
as histórias da minha Infância, vejo que os adultos daquela época,
assim como os de hoje, não percebiam que muitas brincadeiras tinham um
caráter segregatório, faltando-lhes entendimento para reconhecer os
indicativos de preconceito para combatê-los durante o processo educativo
das crianças.
[...] precisamos sempre rememorar a história – a
de cada um de nós e de todos – conhecer a história, estudar a história,
desatando a linguagem acorrentada por tão diversas mordaças, ameaças,
correntes, grilhões. Destaco, ainda, que os profissionais da educação
precisam discutir o racismo e os seus próprios preconceitos, temas que,
com frequência, não têm sido reconhecidos como legitimamente
pedagógicos. Encontro racismo e preconceito nas coisas da escola? Sim, e
muito; e como poderia ser de outro modo? [....] acredito que existe o
melhor método, uma única melhor maneira de ensinar isto ou aquilo; que
tem especial apego a escolas de desenvolvimento, a padrões de
aprendizagem...; que padroniza, que tem nas grades (curriculares) a base
de seu trabalho: que separa, que se grega, desagrega, valoriza a
delação, a desunião, a premiação e o castigo (KRAMER, 1995, p. 69).
O
uso generalizado do conceito de racismo pode esvaziar a importância das
questões raciais, impedindo dessa forma o processo de entendimento da
necessidade da persistência da discriminação sobre este tema, dentro de
um novo enfoque.
Os estudos que tratam das questões raciais no
Brasil estão divididos, de acordo com Nogueira (1979), em três
correntes: afro-brasileira, a dos estudos históricos e a sociológica,
cada qual trazendo, de acordo com suas especificidades, suas concepções e
definições de racismo e preconceito.
Considera-se como
preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável,
culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos
quais se tem como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a
toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece.
Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é,
quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do
indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca;
quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo
étnico, para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de
origem (NOGUEIRA, 1979, p.78-79).
Dentre as diferenças dos
preconceitos raciais de marca e de origem, gostaríamos de destacar a
questão da carga afetiva, em que, segundo o autor, o preconceito de
marca tende a ser mais intelectivo e estético, enquanto o de origem
tende a ser mais emocional e integral.
Acreditamos que o racismo,
o preconceito racial e os estereótipos negativos experimentados pela
criança negra influenciam o seu desenvolvimento global e, em particular,
a sua autoimagem e estima. Neste sentido, procuramos destacar como as
questões raciais e os preconceitos são percebidos e interpretados no
cotidiano das creches.
Segundo definição do “Dicionário de
relações étnicas e raciais”, o termo preconceito vem do latim prae,
antes, e conceptu, conceito, que pode ser explicado como um conjunto de
crenças e valores aprendidos, mesmo não havendo nenhum contato ou
experiência compartilhada anteriormente, podendo ser um fenômeno
individual ou social. O preconceito social está ligado às classes
sociais, às atitudes ou ideias formadas antecipadamente, sem fundamento
razoável e de maneira desfavorável em relação aos vários elementos
sociais, grupos e culturas.
No cotidiano das instituições de
Educação Infantil, frequentemente o professor se depara com uma série de
evidências sobre as questões raciais e o preconceito, tendo ou não
clareza delas, muitas vezes utilizando práticas pertencentes ao senso
comum que podem reforçar o racismo. Percebemos, nas creches, crianças
negras querendo os seus cabelos lisos, ruivos, louros e negros
escorridos, isto é, buscando a ideia do “belo” que lhes é transmitida
através de um processo excludente e preconceituoso, deformando a imagem
que a criança negra faz de si e reforçando a negação de sua condição
racial.
Nos parâmetros curriculares nacionais esses atores não
aparecem, a proposta pedagógica inicial não respeita e acolhe a
diversidade étnico-racial; a cultura da criança e suas diversidades
aparecem timidamente numa proposta pedagógica excludente; os saberes das
disciplinas omitem a cultura local, étnica racial, social e de direito.
Em
2003, foi aprovada a Lei 10.639/03, tornando obrigatório nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, tanto oficiais quanto
particulares, o ensino da História e da Cultura Afro-brasileiras, da
História da África, o que, esperamos, possa apontar rotas, caminhos e
possibilidades de romper com as desigualdades e a intolerância no
Brasil. O sucesso da implementação da lei depende da continuação das
lutas sociais e coletivas, sendo a sua mera aprovação um exemplo de
vitória e conquista dos movimentos sociais.
O convite é para
conflagrarmos um lugar de luta sutil e natural, um espaço de mobilização
que componha uma pauta contra o racismo e o preconceito, introduzidos
nas brincadeiras de roda, de pipa, de amarelinha, reinfantilizando os
espaços de formação, de educar e cuidar, não se desprezando a pedagogia
do lugar, como cita Ana Beatriz Goulart de Faria (2007), ressaltando a
importância de se pensar sobre o
[...] sentido de restaurar a
experiência infantil do urbano, o amor pelas esquinas, os esconderijos,
os encontros fortuitos, os deslocamentos das funções, o jogo. [...]
Imperdível e fundamental a grande estreia dos últimos tempos! (ANA
BEATRIZ GOULART, 2007, p.103-104).
Que os meninos e as meninas
das creches públicas, comunitárias, privadas, filantrópicas e
confeccionais no Brasil não recebam titulações pela cor e pelo
pertencimento racial é nosso sonho e esperança.
Yvone Costa
de Souza é assistente social da Creche Fiocruz, Mestre em Educação,
Cultura e Comunicação pela FEBF-Uerj, especialista em Educação Infantil
pela PUC-Rio, professora-substituta do Departamento de Educação e da
Infância da Uerj.
Referências bibliográficas
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GOMES, Nilma L.; SILVA, Petronilha Beatriz G. e (Org.).
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KRAMER, Sonia. Questões raciais e
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NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco. Estudos de Relações Raciais. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979.
SOUZA,
Yvone Costa de. Atravessando a Linha Vermelha: Programa “Nova Baixada”
de Educação Infantil – discutindo a diversidade étnico-racial e cultural
na formação docente. 2009. p.119. Dissertação. (Mestrado) –
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação da
Baixada Fluminense. 2009.
Crianças negras: deixei meu coração embaixo da carteira. Porto Alegre: Mediação, 2002.
A COR DA CULTURA!