domingo, 9 de outubro de 2011

Posso falar da Cultura Afro na Educação Infantil?

 Fonte: http://www.nepiec.com.br/lesgislacao/pceb002_07.pdf

PARECER CNE/CEB Nº:
i. 2/2007


Quanto à abrangência das Diretrizes no âmbito da Educação Infantil, objeto específico
da consulta feita a esta Câmara, os textos normativos não deixam margem para dúvidas. No
primeiro parágrafo do item intitulado, História e Cultura Afro-Brasileira – Determinações,
do Parecer CNE/CP nº 3/2004, parecer que corporifica as Diretrizes, lê-se: A obrigatoriedade
de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos de Educação
Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na
formação de professores (negrito do relator). No que diz respeito à composição dos níveis
escolares, a relação é insofismável. A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – LDB,
estabelece no inciso I do art. 21 que a Educação Básica é formada pela Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Ensino Médio (negrito do relator). Disso decorre que a clareza da
inclusão da Educação Infantil na órbita de incidência das Diretrizes é cristalina. Em
continuação, a Resolução CNE/CP n° 1, de 17 de junho de 2004, ao oficializar a instituição
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, expressa no seu art. 1° que essas
Diretrizes devem ser observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos níveis e
modalidades da educação brasileira e, em especial, por instituições que desenvolvem
programas de formação inicial e continuada de professores (negrito do relator). Não obstante
a referência indistinta e totalizadora aos níveis e modalidades da educação brasileira, a
mesma Resolução é direta ao referir-se nominalmente à Educação Básica, quando no
parágrafo 3° do art. 3°, complementa as determinações da Lei Federal nº 10.639/2003:
“O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
na Educação Básica, nos termos da Lei nº 10.639/2003, refere-se, em
especial, aos componentes curriculares de Educação Artística,
Literatura e História do Brasil”. (negrito do relator)
Cabe observar que, embora os conteúdos da Educação Infantil não sejam organizados
em componentes curriculares, os temas referentes à História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana devem estar presentes no conjunto de todas as atividades desenvolvidas com as
crianças.
O próprio Parecer CNE/CP nº 3/2004, orientador filosófico e conceitual da referida
Resolução, antecipando as determinações da Resolução CNE/CP nº 1/2004, deixa evidente a
referência inclusiva da Educação Infantil, mencionando a responsabilidade dos diferentes
níveis e modalidades de ensino, bem como definindo espaços escolares e atividades a serem
desenvolvidas com vistas à execução das Diretrizes:
“O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação
das relações étnico-raciais, tal como explicita o presente parecer, se
desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e
modalidades de ensino, como conteúdos de disciplinas,
particularmente, Educação Artística, Literatura e História do Brasil,
sem prejuízo das demais, em atividades curriculares ou não, trabalhos
em sala de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na
utilização da sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de
recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares”. (negrito
do relator)
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Em complemento a estas observações, uma breve leitura interpretativa dos
dispositivos legais presentes em documentos que especificam os direitos das crianças e dos
adolescentes, confirma o acerto da inclusão da Educação Infantil no âmbito das normas
estabelecidas pelas Diretrizes referidas, considerados os seus objetivos de promoção da
igualdade racial e o que isso significa, pessoal e socialmente, para aqueles a quem a
discriminação racial, ainda presente na sociedade brasileira, tem diminuído as chances e o
direito de exercitar a cidadania na sua inteireza.
Já nas Disposições Preliminares do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990, ao especificar os direitos fundamentais inerentes às crianças e
aos adolescentes, o § 3° estabelece que esses cidadãos terão assegurados, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
No que diz respeito à educação, por evidente, não se pode pressupor um
desenvolvimento integral da criança e do adolescente, em condições de liberdade e dignidade
se não, de forma deliberada, se tomar esses valores como fundamentos basilares das práticas
de cuidar e de educar. Nesse sentido, as condições de liberdade e dignidade, no que diz
respeito ao convívio no espaço escolar entre crianças de pertencimento étnico-racial diverso,
como é o caso na maioria das nossas creches e escolas brasileiras – sobretudo, nas públicas,
onde a maioria de crianças e adolescentes é negra – impõe, dentre as ações genéricas e
indistintas, a adoção de concepções pedagógicas, procedimentos educativos e práticas de
cuidar, previamente planejados para combater estereótipos, positivar e equalizar as
representações da diversidade étnico-racial, valorizar as identidades familiares e comunitárias,
elevar a auto-estima, a auto-imagem e a auto confiança das crianças e adolescentes, negros,
bem como combater, educativamente, todos os preconceitos, sobretudo os preconceitos
raciais, por mais ingênua e pueril que seja a forma como eles possam apresentar-se. Enfim,
concepções e procedimentos sobejamente especificados nas determinações estabelecidas pelo
Parecer CNE/CP nº 3/2004, relativas às Diretrizes mencionadas.
Certamente, não satisfeito com a definição genérica do direito das crianças e dos
adolescentes à dignidade, quis o legislador especificar quais seriam os seus elementos
constitutivos fazendo observar o que, contra este direito, será considerado prática sujeita à
punição, vejamos:
Art. 5° Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais. (Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990)
Continua a mesma Lei, agora codificando textualmente aspectos do respeito e da
dignidade:
Art. 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade
física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores,
idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
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Art. 18 É dever de todos velar pela dignidade da criança e do
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Cabe observar que todos esses dispositivos abrigam-se no texto da Constituição
Federal de 1988 e, sendo assim, de alguma maneira reproduzem o seu conteúdo. Vejamos o
que diz a art. 227 desta carta constitucional:
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Ampliando um pouco mais o escopo das observações e argumentos, não só relativo à
obrigatoriedade legal e normativa, mas a necessidade histórica, social e ética de aplicação das
Diretrizes para a Educação Infantil, pode-se recorrer à Convenção sobre os Direitos da
Criança, em vigor internacional desde 2 de setembro de 1990, e que foi ratificada pelo
Governo Brasileiro, em 24 de setembro do mesmo ano. No artigo 29, ao emitir orientações
aos Estados-Parte da Convenção sobre a educação das crianças, recomenda: preparar a
criança para assumir uma vida responsável numa sociedade livre, com espírito de
compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos
étnicos, nacionais e religiosos e pessoas de origem indígena. (negrito do relator)
A decisão constitucional de incluir as crianças e adolescentes no âmbito da cidadania
codificando legalmente os seus direitos fundamentais, dentre eles os mencionados direitos à
dignidade, ao respeito, à liberdade e a não discriminação, foi sabiamente interpretada pela
relatora do texto das Diretrizes ao incorporar a Educação Infantil no órbita da sua abrangência.
Ao fazer isso, transformou as Diretrizes, além de texto normativo específico voltado à
promoção da igualdade étnico-racial na educação, em documento caucionador e ao mesmo
tempo complementar de uma política pública de Estado relativa à proteção dos direitos das
crianças e dos adolescentes, em especial, daquelas que, historicamente, mais têm sofrido com
a violação dos seus direitos: as crianças e adolescentes negros.
Em um país com metade da população negra e com um histórico de quase 400 anos de
escravidão – a contar do início do nosso ingresso involuntário no mundo moderno, em 1500 –
o longo processo de construção da democracia só se concluirá na sua plenitude quando se
igualizar as oportunidades, os direitos e as condições mínimas de existência, liquidando-se, de
uma vez por todas, com a discriminação racial. Na nossa história republicana, nunca houve
momento mais propício para a radicalização desse processo. Nesse sentido, as Diretrizes, pela
oportunidade do seu surgimento e pelos objetivos preconizados nas suas determinações, no
que diz respeito à construção da igualdade étnico-racial, configura-se como um documento
normativo impar cuja aplicação imediata, da Educação Infantil à Educação Superior, é uma
necessidade indiscutível.
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II – VOTO DO RELATOR
Com base nos documentos legais e normativos consultados, não há dúvidas quanto à
inclusão da Educação Infantil no âmbito de incidência das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira. No entanto, os argumentos que embasam a consulta somados às observações de
vários agentes educacionais ouvidos pelo relator deste parecer indicam a necessidade urgente
de adoção de mecanismos de incentivo à implementação das Diretrizes, bem como as
decorrentes ações de acompanhamento e avaliação do seu cumprimento em todo o território
nacional.
Brasília, (DF), 31 de janeiro de 2007.
Conselheiro Wilson Roberto de Mattos – Relator
i. III – DECISÃO DA CÂMARA
A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto do Relator.
Sala das Sessões, em 31 de janeiro de 2007.
Conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro – Presidente
Conselheira Maria Beatriz Luce – Vice-Presidente

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